Administrar, pela caridade, o que é de Deus
Atualizado: 26 de set.

Diante da síntese dos Mandamentos, o amor, o cristão se depara com o constante desafio de servir a Deus, servindo ao próximo, inclusive nas relações justas que testificam a nossa fé e a anunciam.
Desde o seu Fundador, a Igreja de Jesus sempre refletiu sobre a vasta dimensão social que se lhe depara. Os Apóstolos e a Comunidade-Menina nunca se esqueceram de que as relações de justiça, inclusive no que envolve as posses dos cristãos, é designativo do amor querido por Jesus. Neste mesmo sentido, São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, oferecendo um retrato dos primeiros cristãos, esclarece-nos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum. […] Repartia-se então a cada um deles conforme a sua necessidade” (At 4,32.35).
Muitos inadvertidos podem dizer que, já desde os tempos apostólicos, os caracteres do socialismo e do comunismo – tal como surgiram com os preceitos marxistas e de outros autores – já podiam ser contemplados. O que não é verdade! Pois, o que Deus realmente quer é que todos vivam com dignidade, não sob a égide de uma lei humana, mas sob o prisma da caridade, que deve eivar a nossa consciência de seguidores do Seu Evangelho.
Engana-se, também, quem julga que, na Igreja nascente todos, universalmente, possuíam em suas consciências esta clareza da vivência da justiça como consequência da caridade. Nos Atos dos Apóstolos, temos, por exemplo, o episódio de Ananias e Safira, apresentado logo após o demonstrativo do espírito de concórdia dos primeiros cristãos. Ananias e Safira, ao venderem um campo, separaram o valor recebido em duas partes, apresentando apenas uma “aos pés dos Apóstolos” (At 5,2) e subtraindo para si a outra. Como podemos nos esquecer das situações de divisão apresentadas por Paulo em suas cartas? Porém, salta-nos aos olhos a denúncia feita por São Tiago: “Vós desprezais o pobre!” (Tg 2,6). Dessa forma, fala-nos da falta de caridade e da secção social que não deveriam – e nem devem – existir entre os cristãos.
Já no Antigo Testamento (cf. Am 8,4-7 et alii), Deus reclama da avareza, da desonestidade, da concorrência de barganha, da soberba, da injustiça. Percebemos assim que a palavra divina, rompendo o descortinar dos tempos, ilustra o que ora vemos no mundo permeado de tanta miséria. Somos administradores dos bens do Senhor; de tudo o que Ele, na Sua bondade libérrima, criou, pondo à nossa disposição. Aquele, que é o verdadeiro e único Rico porque fez tudo quanto existe, entregou-nos, em nossas mãos, o que é Seu para, pelas atitudes de justiça, sermos solícitos com Ele e uns com os outros, pois, a quem muito é dado, muito será exigido (cf. Lc 12,48). Logo, a propriedade privada não é condenada pela Igreja, porque isto não é ensinamento do Senhor, pois a ordem que recebemos no Evangelho é esta: “[…] usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas. Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se vós não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?” (Lc 16,9-12).
Nesta reflexão, desejo recordar o que, no tumultuado final do século XIX, já assaltado por tantas doutrinas errôneas, disse o Papa Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, depois reprisado pelo Papa São João Paulo II, na Encíclica Centesimus Annus (cf. n. 30), sobre o caráter natural do direito de propriedade privada, fundamental para a autonomia e o desenvolvimento da pessoa: “os abastados, portanto, são advertidos […]; os ricos devem tremer, pensando nas ameaças de Jesus Cristo […]; do uso dos seus bens deverão prestar contas a Deus Juiz” (n. 11). E continua Leão XIII, citando Santo Tomás de Aquino: “Agora, se se pergunta em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: ‘A esse respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas sim por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas necessidades’ (S. Tomás, Sum. Teol., II-II, q. 65, a. 2)” (n. 12).
Lembremo-nos: somos administradores do que é de Deus, dos Seus bens que Ele põe em nossas mãos, para que, justamente, dignifiquemos o próximo, em todas as suas dimensões, facilitando para que cheguem à salvação, sublime bem que nos é proporcionado pela Divina Providência, pois, Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4), citação na qual São Paulo também nos exorta a que façamos “preces e orações, súplicas e ação de graças por todos os homens; pelos que governam e por todos os que ocupam altos cargos” (1Tm 2,1), porque grande e árdua é a missão que possuem, confiada por Deus e por nós.
Padre Everson Fontes Fonseca
Pároco da paróquia Sagrado Coração de Jesus (Grageru)