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Das mortes para a morte

No mundo da vaidade, tal como este, onde o material se impõe, a todo custo, como verdadeiro, a morte tende a apresentar-se como um fim em si mesma, se impostando, indevidamente, como última palavra.


Não. A morte, por si, não tem a última palavra sobre a vida. Nós, criados segundo a imagem e semelhança de Deus, redimidos por Cristo, valemos mais do que um suspiro derradeiro. Vocacionados à vida verdadeira (em grego: zoé, em contraposição ao termo bios), é-nos inadmissível que afunilemos o sentido deste nosso existir a este presente, sujeito a tantas e tantas circunstâncias por vezes difíceis, pesarosas. E quem nos garante tão alta valia? O próprio Senhor, que disse: "Eu Sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá" (Jo 11,25-26).


Enlutado pela morte de seu irmão Sátiro, Santo Agostinho faz-nos um convite bastante interessante, conveniente: vislumbrando, constantemente, a morte, cotidianamente, morrermos. Como assim? Escutemo-lo em suas próprias palavras: "Morramos diariamente no desejo e em ato, para que, por esta segregação, nossa alma aprenda a se subtrair das concupiscências corporais. Que ela, como se já estivesse nas alturas, onde não a alcançam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte". Neste mesmo sentido, naquela poesia que atribuem a São Francisco de Assis, temos este mesmo pensamento com outras palavras: "E é morrendo que se vive para a vida eterna". Desta maneira, a cada experiência deste exato momento chamado vida, encaremo-lo na santidade querida por Deus, fazendo morrer aquilo que poderá nos derrocar na morte eterna.


É bom sempre visitar os cemitérios para, ali, fazermos uma séria meditação. Num campo santo, refletimos acerca do nosso porvir. Na vulgarmente conhecida 'Capela dos Ossos', na portuguesa cidade de Évora, é possível ler logo à entrada: "Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos". E o que temos em todos os cemitérios? A silenciosa história de muitos sonhos sepultados, tantos deles incompletos; restos mortais de pessoas cujos falecimentos interromperam o vigor de um juventude, o planejamento de prósperos futuros… enfim, no cemitério, os ossos podem ser escutados no drama misterioso chamado morte, em seu silêncio sepulcral.


Entretanto, a interpretação desta mensagem é dada por aquele que se propõe à meditação. Para os que não têm fé, o cemitério (e a morte, consequentemente) é um lugar de desolação, de ausência de perspectivas temporais, quanto mais eternas. Porém, para os que têm fé, ouve-se o brado: "Sei que o meu redentor está vivo e que, no fim, se levantará sobre o pó; e, depois que tiverem arrancado esta minha pele, desde a minha carne, verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não a um estranho. Meus sentimentos se abrasam dentro de mim" (Jó 19,25-27). Esta perspectiva da morte é-nos concedida pela fé; pela fé no mistério pascal do Ressuscitado. Glorioso, far-nos-á ressurgir dos ossos, do nosso pó, para a glorificação eterna do Seu Reino. Ele, as primícias da ressurreição e da vida.


Para tanto, é preciso que morramos aos poucos pela renúncia para a graça. E é neste mistério de morte e vida (morte para o mundo e vida para Deus) e de vida e morte (vida para Deus cujos umbrais para a sua plenitude não dispensam a gelidez da morte física) que palmilhamos na vontade de Deus. E, mais uma vez, Santo Agostinho: "Não se deve lastimar a morte, que é causa da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não fugiu. Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como remédio. [...] Por isso, tem o espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste assembleia, embora pertença só aos santos lá chegar, e cantar a Deus o louvor". E assim, por uma morte interiormente tranquila, consumaremos em nós mesmos a santidade querida por Deus.


A cada Santa Missa, após a transubstanciação do pão e do vinho nos Corpo e Sangue do Senhor Jesus Cristo, proclamamos a morte e a ressurreição do Senhor e nos pomos à espera de Sua vinda. Uma destas chegadas do Salvador se dá pela experiência da morte derradeira após tantas outras mortificações interiores e paulatinas. Proclamando a morte vitoriosa do Senhor, respondemos, em assentimento, à pergunta que Jesus faz a Marta depois ter se apresentado como ressurreição e vida: "Crês isto? E ela: 'Sim, Senhor, creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que vem ao mundo" (Jo 11,27). Escutemos tal indagação - por vezes incômoda - do Senhor para nós, quando nos associamos, pela Eucaristia, ao Seu mistério pascal.


Sufraguemos, neste dia da Comemoração dos Fiéis Defuntos, com a sublimíssima prece eucarística, a Igreja de Deus padecente no Purgatório, crendo que, purificadas, as almas dos que ali se acham gozarão das eternas alegrias da Pátria dos Bem-aventurados, da visão infinda e plena do Senhor.


Padre Everson Fontes Fonseca é pároco da Paróquia Nossa Senhora da Conceição (Mosqueiro, Aracaju).

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