ENTREVISTA – Frei Wanderson: “A música é veículo privilegiado da Palavra de Deus".

Acolhendo convite da Arquidiocese de Aracaju, o frei Wanderson Luiz Freitas, O. Carm., religioso carmelita, ministrou uma grande formação sobre música litúrgica, entre os dias 6 e 7 deste mês, na Escola Santa Maria. Ele é graduado em música, filosofia e teologia. Compositor litúrgico, também é membro da equipe de compositores da CNBB, assessor para a música litúrgica do Regional Nordeste 2, e também membro da Comissão de Liturgia da Arquidiocese de Olinda e Recife.
O que é primordial para que os músicos consigam um maior aprimoramento do seu trabalho dentro das igrejas? Qual o melhor argumento para a defesa de um maior investimento na formação litúrgica e musical dos agentes e ministros da música?
A Sacrosanctum Concilium, no nº 112, deixa bem claro: a música é parte necessária e integrante da liturgia, não um mero adorno, passatempo ou divertimento. Ela é veículo privilegiado da Palavra de Deus e lugar de encontro com o Mistério. Não pode ser feita nem executada de qualquer maneira. Exige conhecimento, preparo, dedicação. Um serviço litúrgico musical condigno prevê, em primeiro lugar, formação litúrgica – um mínimo de conhecimento da natureza da liturgia e de seus elementos componentes – e formação musical – conhecimento de teoria e bom domínio da técnica vocal, para os cantores, e do instrumento musical que se pretende executar, para os instrumentistas. No nosso contexto eclesial a lacuna nesse campo ainda é muito grande, e por motivos os mais diversos. Creio que o começo de uma solução passe pela valorização do serviço musical na liturgia através do apoio e incentivo por parte dos pastores. Isso se traduz em oferta de oportunidades formativas continuadas (escola de música litúrgica, cursos permanentes, etc) e formações pontuais específicas (como esta que a Arquidiocese oferece agora). É preciso aos poucos deixando de lado o amadorismo e partir para a busca de uma qualidade sempre maior, se quisermos ver as nossas celebrações revestidas da dignidade que o Mistério celebrado exige.
Quais os critérios que devem ser considerados para a escolha de um canto litúrgico?
O canto litúrgico nunca existe por si mesmo, mas está vinculado a uma celebração específica e a um momento ritual específico. Portanto, antes de escolher um canto, deve-se ter em conta o dia litúrgico com seus textos próprios e a ação ritual à qual se destina o canto. Depois, é importante verificar se a composição segue os critérios estabelecidos pela Igreja para o canto litúrgico: que seja texto bíblico ou, pelo menos, de inspiração bíblica, (se for o próprio texto bíblico, melhor ainda), ou ainda extraído das fontes litúrgicas diversas (Missal, Liturgia das Horas, Rituais, etc), que seja fiel à doutrina da Igreja e que tenha a forma poética e musical adequada à função ritual à qual se destina. Aos agentes da música litúrgica cabe o discernimento, a partir do aprofundamento e da busca constante de formação. Para guiar a escolha, a Igreja propõe subsídios de referência, que contêm repertório seguro e fiel à natureza da Liturgia. No caso da Igreja no Brasil, o Hinário Litúrgico da CNBB é essa referência de qualidade para o repertório litúrgico.
Por que a assembleia deve ter prioridade na execução dos cantos litúrgicos?
A assembleia é a comunidade dos batizados reunida para celebrar o mistério da Nova Aliança. Ela é convocada pelo Senhor, que se faz presente em seu meio e a ela comunica sua palavra e a alimenta com o seu Pão. A essa assembleia celebrante cabe a participação nos divinos mistérios em diversos níveis, sendo o canto um dos meios privilegiados de participação e expressão do diálogo entre o Senhor e sua Igreja. Por essa razão o canto pertence, antes de mais, à assembleia, que através dele manifesta sua fé e se nutre, também, da Palavra divina. O grupo de cantores, enquanto membro da assembleia, presta um serviço de sustentação do canto do povo e, claro, de enriquecimento do canto da assembleia, que não precisa cantar tudo o tempo todo. Na vida litúrgico-musical de uma comunidade, é importante a busca de equilíbrio entre esses os dois elementos: assembleia e grupo de cantores, um completando o outro. Mas, jamais, a assembleia deve ser completamente excluída do canto em função, por exemplo, da performance do grupo que vai cantar naquele dia.
Quais as diferenças entre música litúrgica e música religiosa? O senhor concorda que muitas músicas cantadas em nossas liturgias estão distanciadas do contexto celebrativo?
A música litúrgica, como já dito anteriormente, se vincula aos textos da liturgia para revesti-los de maior expressividade, com todos os recursos da arte musical. A música religiosa existe com outra finalidade, como a de expressar a comunhão com o divino, o sentimento religioso daquele que crê, etc, e se reveste de um caráter muito geral, não servindo aos mesmos propósitos da música litúrgica. As nossas celebrações têm sido palco da grande confusão que se faz atualmente entre uma e outra: boa parte do que se canta em nossas liturgias passa longe dos critérios que a Igreja estabelece para a música litúrgica e a liturgia termina sendo abafada pelas subjetividades, pelo gosto pessoal, pela moda religiosa, etc. A música religiosa têm seu espaço na evangelização, na vivência de grupos de oração, encontros diversos, entre outros. Mas a natureza da liturgia requer um tipo de canto específico, próprio, feito sob medida para ela, e que seja serva do Mistério, e não da corrente espiritual do momento.
Como o senhor acolhe a afirmação da Ir. Miria Kolling de que “a Liturgia é o coração da Igreja e o canto é o coração da Liturgia”?
Impossível não concordar com a Ir. Miria. Como a própria Igreja diz na Sacrosanctum Concilium, nº 10, a Liturgia é a fonte donde emana toda a vitalidade da Igreja; é seu coração pulsante, que espalha a vida divina a todos os seus membros. A música confere à liturgia beleza, vibração, expressividade. Sem ela, a liturgia perderia muito de sua força e de seu encanto. Continuaria, evidentemente, a ser canal da graça de Deus; mas não desvelaria um pouco da face d’Aquele que é a fonte de toda beleza e que nos atrai a si pelo esplendor da sua glória, cujo reflexo deve ser a música.