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Uma Quaresma para ver, sentir e cuidar



É perceptível na sociedade hodierna o desaparecimento de algumas expressões fundamentais para as relações humanas, e uma destas é sem qualquer dúvida a compaixão. A dramaturgia, as telenovelas que formam o pensar brasileiro não abordam a temática da compaixão e, portanto, não favorecem o crescimento de cidadãos compassivos.


E, além disso, a compaixão é compreendida de modo distorcido, como sinônimo de um sofrimento que deve ser suportado apenas pelo sofredor. Trata-se de uma situação que dever ser resolvida pelos agentes que a integram e não deve tirar o tempo dos cidadãos que estão empenhados com as próprias atividades.


Não há lugar para o sofrimento na sociedade destes dias. Há uma necessidade de olhar apenas para os cartões postais das cidades para reverenciar os belos resultados do progresso humano e contemplar o que a engenhosidade humana foi capaz de fazer sozinha, recorrendo a si mesma sem precisar de mais nada.


O progresso varre muitas pessoas e as coloca sob os tapetes sociais destes dias que são conhecidos como favelas, como periferias urbanas e existenciais. Nunca é demais ressaltar que o Cristo nasceu numa dessas periferias da humanidade. Não havia lugar para Jesus Cristo nos grandes centros daquele tempo e assim a Sagrada Família é acolhida num estábulo, na periferia de Belém.


Nas periferias estão os pobres, que passam por sérias dificuldades de toda sorte. Nas periferias estão os famintos, os feridos, as pessoas que foram despidas da dignidade. Há quem diga que não se mora nas periferias. E que na verdade, as pessoas estão escondidas nas periferias de ontem e de hoje.


Jesus nasce nestas condições para conhecê-las e experimentá-las desde cedo. De modo que no dia a dia da missão, Jesus manifesta uma predileção por estas pessoas varridas, banidas dos centros, vitimadas pelos preconceitos, tidas como esquecidas pelos homens e até mesmo por Deus.


Jesus vai na contramão desta mentalidade e por isso, cura os leprosos, devolve a visão aos cegos e conversa com os pecadores. Jesus não rejeita os rejeitados, mas acolhe pedindo uma conversão de vida. Jesus Cristo não é seletivo. Ele é compassivo. Na verdade, Jesus é a própria compaixão. (Lucas 17, 11-19)


O vocábulo compaixão é constituído por dois termos: com e patire que significa sofrer. A palavra compaixão implica a capacidade de sofrer com o outro. Jesus é Aquele que tem a capacidade de sofrer conosco, de carregar as dores, de assumir a cruz e dar a vida em prol do outro, considerado na amplitude da alteridade, pois Jesus entrega a vida por cada pessoa e por toda a humanidade.


Desde o início do seu pontificado, no dia 13 de março de 2013, o Papa Francisco aponta para a globalização da indiferença que contraria esta virtude cristã que é a compaixão. Existem muitos organismos sociais atuais que visam substituí-la pela eficiência e pela produtividade.


O progresso econômico dissociado da compaixão gera apenas uma sociedade desumana alicerçada sobre uma espécie de arianismo que rejeita analfabetos, os desabrigados, os desempregados, portadores de doenças graves, portadores de deficiências e hipossuficientes.


Não há lugar para tais pessoas na sociedade contemporânea, como não havia para aleijados, cegos e leprosos no tempo de Jesus. O cristão deve cancelar as raízes da indiferença e substituí-las pela compaixão.


A Igreja, enquanto Casa de Oração, deve ser o lugar privilegiado da compaixão. Deve ser corrigida toda oração que não torna o cristão sensível ao sofrimento do outro, que não gera compromisso missionário em busca das pessoas que foram banidas da sociedade perfeita, que não integram os cartões postais do progresso socioeconômico.


Os verbos que dinamizam a Quaresma 2020 são: Ver, Sentir, Cuidar. Há quem compreenda a insensibilidade como sinônimo de maturidade e fortaleza, pelo contrário, quando a pessoa está enclausurada em si mesma precisa dar passos decisivos no crescimento humano e afetivo.


Nestes dias, é preciso acentuar a máxima existencial que coloca o sentir naquele patamar que é reservado ao pensar. O “Penso, logo existo” cartesiano não foi capaz de cancelar desigualdades sociais e gerar uma sociedade fraterna como deseja a Constituição brasileira de 1988. Não há mais espaço para o pensar que sufoca o sentir. É preciso viabilizar um crescimento social aliado ao sentimento. O progresso socioeconômico não pode sufocar as raízes sentimentais da pessoa humana, nem cancelar os contornos da máxima existencial: “Sinto, logo existo”.


Um dos grandes filósofos alemães do século XX, Martin Heidegger, delineou um projeto existencialista centrado sobre a noção de cuidado. Para Heidegger, o ser se expressa no cuidar. Equivale a dizer que somos enquanto cuidamos. O ser descrito por Heidegger é sempre ser com, está continuamente na companhia do outro. O existencialismo e a alteridade constituem todo o pensamento do filósofo alemão, mas antes de tudo, são apelos contidos no Evangelho de Jesus Cristo. Ele é o Deus que enxerga a pessoa humana, que sente as dores e alegrias que as caracteriza e que cuida com amor de todas as suas feridas.


A Igreja, ou seja, cada cristão é chamado a ser os olhos, o coração e as mãos de Jesus para ver, sentir e cuidar, para reconstruir relações de indiferença à luz da virtude cristã da compaixão. Diante do sofrimento do outro, o cristão não pode cair na trápola que diz: “ Não é comigo! ”.


A luta em prol dos direitos da mulher cunhou a expressão: “Mexeu com uma, mexeu com todas”. É assim que se deve agir vendo a dor do outro como própria, como a dor de um membro da minha família que é a família humana. Ao cuidar da pessoa que enfrenta situações de dor, vestindo o despido, curando o ferido, o cristão ouve a voz de Jesus que diz: Foi a mim que o fizestes (Mateus 25,40).


A pessoa humana experimenta na vida o cuidado de Jesus, desde os pequenos detalhes até os momentos mais complexos. Todos exclamamos ao menos uma vez na vida: A mão do Senhor me levantou (Sl. 117). Em todas as circunstâncias enfrentadas nós fomos e ainda somos surpreendidos pelo socorro de Deus. Ao longo da Quaresma e em toda caminhada da fé, Jesus pede aos cristãos e aos homens e mulheres de boa vontade: Vá e faça a mesma coisa (Lucas 10,37).


Pe. João Cláudio da Conceição é pároco da paróquia Nossa Senhora Aparecida, na Farolândia, Aracaju




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